21 de dezembro de 2007

Aos cacos
quando a eles pertencer


Imagem: llbvn

Com um “basta!” entalado na garganta, fitava o homem no fundo dos olhos. Aquele homem que era seu marido mas que naquele instante, assim como em outros instantes recorrentes de um tempo para cá, parecia um desconhecido a surpreender-lhe a boca do estômago, impiedoso.

Encarou-o, em perplexa decepção, por dez segundos. Nestes dez segundos, couberam seus oito anos juntos, do primeiro beijo até o presente – o casamento, a lua-de-mel, o primeiro de muitos rompantes; os prazeres e as concessões. Conseguiu compactar os anos de convívio em dez angustiantes segundos e neles ainda coube, pela última vez, a dúvida: “vale a pena insistir nisso?”, e a resposta definitiva: “não!”.

O casal ainda se olhava como quem radiografa em despedida o interior alheio, derradeira tentativa de mapear o que passa dentro daquele de quem um dia se foi íntimo mas de repente não se é mais. O “basta!”, há meses trancado na jugular da mulher, irrompeu em um gesto. Extremado, inadequado, equivocado, seu gesto tomou proporções exageradas, sabia disso, mas não era mais possível controlar-se.

Da garganta o “basta!” correu pelos braços tal qual corrente elétrica em sobrecarga. Ao chegar nas pontas dos dedos, a eletricidade que represara puxou a tolha sobre a mesa com toda a força que as mãos delicadas daquela mulher de um metro e sessenta puderam recrutar. Foi o tempo de duas piscadelas, e a mesa posta do café-da-manhã fragmentou-se em cacos empapados de café com leite. Pão, queijo e estilhaços de louça sobre o piso de azulejo verde escuro. A toalha branca, agora manchada com a última refeição a dois, cobria parte da porcelana estilhaçada.

Durante a cena, nenhum dos dois disse palavra e assim permaneceram. Enquanto o homem a olhava atônito, ela levantou-se e foi buscar a bolsa. Dando as costas rumou à porta, disse adeus e informou que outra hora – qualquer hora distante daquela – daria um jeito de buscar suas coisas. Falou assim mesmo, “minhas coisas”, como se fosse pouco o que deixava para trás. Eram pertences reunidos ao longo de oito anos, mas eram muito pouco diante do que em realidade estava deixando naquele apartamento. Sem fazer ruído, fechou a porta e se foi.

Ele permaneceu sentado em meio aos restos de comida, olhando os cacos espalhados pelo chão. Do início da discussão até aquele momento não esboçou reação, só conseguindo retomar a fala quando a mulher já estava lá fora, indo embora pelo elevador. Pouco mais alto que um sussurro, dedicou-lhe quatro palavras terminais, sem raiva nem piedade, sem qualquer emoção. Honestíssimo, balbuciou: “grande filha da puta...”.

2 comentários:

KImdaMagna disse...

O “basta!”, há meses trancado na jugular da mulher, pronunciado por Ela me deu uma paz e alegria incontidas.

Força do texto equiparando se à força d´Ela.

No momento em que deixamos muitas coisas para trás, criamos assim também mais espaço para o que receberemos depois.

É uma delícia ler te nos olhos do Real.

Xaxuaxo

Unknown disse...

Nossa excelente descrição!!!
Acho que é bem isso que acontece qdo resolvemos dar um basta! tudo vem e em segundos se vai...!
Parabéns!! adorei!

beijos