28 de outubro de 2007

Clausura

Sábado com sol. Parquinho, meu neto de quatro anos, gira-gira e balanço. Lembro das cores – eram muitas. Sob o amarelo dourado daquela manhã de primavera, uma profusão de azuis, vermelhos e verdes em movimento compassado com os brinquedos. Os cabelos pretos do meu neto escorriam sobre sua testa.

Das últimas coisas que vi, quero guardar seu sorriso de dentes de leite e boca vermelha. Vermelho vivo, vermelho-saúde.

Dei a ele algodão doce. Sorri e olhei em volta. Nesta hora, o parquinho foi ficando distante e os sons passaram a chegar aos meus ouvidos em câmera lenta, enquanto as cores sumiam. Tive tempo de ver olhos arregalados de neto e ouvir um chamado que ecoava longe: ”VÔ?!”.

Abri os olhos com o rosto colado na grama e mal alinhado àquele corpo que não mais me obedecia. De nariz enfiado no mato, senti cheiro de terra regada, cheiro de terra úmida. Tentei mais uma vez me levantar, em vão. O corpo não respondia.

De repente, de todas as cores só ficou a escuridão.

***

Não sei exatamente quanto tempo passei sem consciência. Pela conversa dos que me cercam, foram dias. Acontece agora que, apesar de consciente, não tenho como demonstrar que acordei.

Não abro os olhos e não consigo mexer nenhum músculo, nenhum maldito músculo deste corpo que só faz pesar sobre a cama. Nem quando Lina fica horas ao meu lado e pede “aperta minha mão se estiver escutando, pai...”. Toda vez estou escutando, mas não consigo apertar sua mão.

Ignorando que eu esteja acordado, as pessoas falam do meu “caso” como se eu não estivesse aqui. Entre vozes de parentes, médicos e enfermeiras, Carmina Burana toca na minha cabeça, sem cessar. É sombria e tensa a trilha sonora da minha escuridão.

Os doutores garantem para Amália que não estou sofrendo; afirmam convictos que, “conforme as ressonâncias apontam”, não posso sentir nada. Falam coisas sobre meu cérebro ter sido “afetado” e explicam com didática porque os “neurônios morreram”. Por fim, baixam a voz em tom de pesar, ao revelar para Amália a existência de uma “área necrosada” e a alta probabilidade de “seqüelas severas, caso sobreviva”.

No entanto, contrariando as garantias confiadas à tecnologia, posso perceber tudo o que acontece ao meu redor. A despeito dos exames, eu sinto e ouço, perfeitamente. Sinto o toque das mãos finas da Amália no meu rosto – o mesmo toque de três décadas atrás, quando nos conhecemos. E escuto seu choro quando, depois de tentar a todo custo arrancar uma reação do meu corpo inerte, desiste e verte em lágrimas. Gosto quando ela chora de rosto colado no meu. Seu pranto escorre até meus lábios secos e posso sentir o gosto do sal.

Aqui, me alimentam pelas veias. Outro dia, uma das enfermeiras disse que não encontrava mais as do braço. Começaram, então, a enfiar a agulha na minha coxa esquerda. Me desespero por não conseguir pedir que parem. Seria maravilhoso poder descansar a consciência.

Preso dentro de mim nesta UTI, tenho ultimamente pensado muito em suicídio. Em eutanásia também, mas o direito – aos olhares alheios ilegítimo – de acabar eu mesmo com minha vida é tema da maior parte dos meus pensamentos. Se meu corpo voltasse a me pertencer por apenas cinco minutos, daria um jeito de acabar com tudo. Escolheria maneira rápida e, na medida do possível, emocionante. Cair quarenta metros, livre, na direção de uma cachoeira pedregosa seria um modo de morrer com emoção.

Tem gente que escolhe formas mais trabalhosas de acabar com a vida. Eu faria de forma que não demorasse. Sinto preguiça só de pensar em me matar como Sylvia Plath, por exemplo (“Ariel” é livro de cabeceira da Amália – a versão original, em inglês). A poeta podia ter cortado os pulsos – forma mais dramática de suicídio, tipicamente feminina – ou dado um tiro certeiro nas têmporas. Mas, não. Sylvia abriu o gás de cozinha e esperou que a vida fosse embora aos poucos.

Penso a beça nessas coisas. No entanto, de nada valem estes pensamentos, já que estou fadado a ser mantido vivo e inerte com uma agulha espetada na coxa, até o dia em que esta minha consciência resolver sair de cena e descansar.

Quando chegar essa hora, ao invés da Carmina Burana que me martela a mente, tensa, quero que uma melodia de paz reverbere em mim. Quero morrer numa tarde de sol bem amarela e, ao descer pelo buraco na terra, meu último desejo será o de ser ninado por uma voz de mulher entoando a Ave Maria, de Gounod.

21 de outubro de 2007

Não trairás...
trairás


Desenho gentilmente cedido
pelo artista gaúcho Gilmar Fraga

outros trabalhos do desenhista
em
Fragadesenhos

Talvez porque eu tenha estudado em colégio de padres, talvez porque tenha recebido três sacramentos – fui até a crisma –, talvez porque viva num país católico...fecho os olhos nesse vôo Porto Alegre-São Paulo tomada de uma alegria quase infantil, mas também cheia de culpa. “Não trairás”. A voz grossa vem do cérebro, autônoma: voz de Moisés.

De outro pedaço do cérebro, cheia de vida própria, outra voz pergunta o por quê da crise. “Oras, você SÓ passou uma noite com o colega do acento ao lado”, enfatizava. “Traição é fazer coisa muito mais grave que isso.” Olho pra ele e confiro. Faz sentido.

Estou com 32 anos. Com o Caio, há seis. Há cinco sem deitar a cabeça em um peito nu que não seja o dele.

Vim a Porto Alegre em um julho de frio úmido, participar de uma audiência chata em defesa de um empresário estúpido do interior de São Paulo. Pelo menos a companhia na viagem foi espetacular.


***

Conheci o Junior no primeiro dia de escritório. Na sexta-feira seguinte já ficamos amigos, durante um happy hour que se estendeu até as cinco da madrugada, acabando na pista de uma boate no Itaim. Naquela época, fazia um ano que eu estava com o Caio. Deitava a cabeça em um único peito nu havia 366 dias (ano bissexto).

Eu estava com meus novos colegas de trabalho desde as 10h da manhã passada; trabalhamos o dia todo, emendamos o serviço num chope perto do escritório e lá pelas tantas resolvemos sair daquela mesinha apertada e ir dançar.

Meu novo amigo tinha um quê de gente desprendida, o que fazia dele mais atraente à medida que conversávamos. Na boate, passei ao uísque com energético, porque a cerveja estava dando sono. Meu namoro não foi tema da conversa e Caio tinha ido visitar os pais no interior. Resultado: passei a noite com o Junior.

Mas a partir da segunda-feira seguinte, dia após dia fomos nos tornando amigos. Só amigos e muito amigos. A noite de tesão virou assunto nosso de fim de happy hour, quando sobrávamos só eu e ele na mesa úmida de cerveja. Todo mundo sempre ia embora e a gente ficava pra saideira. Essa era a hora de por em dia conversas que não interessavam aos outros: direito autoral, filosofia, política...

Só que aquela noite tinha sido cinco anos atrás e, depois dela, nunca mais deitei a cabeça num peito nu que não fosse o do Caio. Até a noite passada.

***

Porto Alegre estava chuvosa, fria e cansativa. No entanto, mesmo naquela noite em que os termômetros marcavam menos dez graus, tínhamos que comemorar o acordo que conseguimos na audiência da tarde. Nosso cliente, o empresário estúpido do interior de São Paulo, ia ter que desembolsar muito pouco pro infeliz que o processara.

Lá fomos nós, comemorar como tantas vezes comemoramos. Só que, ao contrário das outras vezes (com exceção da primeira), a celebração acabou em café da manhã. Na cama.

Pra falar a verdade, foi muito melhor que da primeira vez, porque a gente estava à vontade – tão à vontade quanto no dia em que cada um veio ao mundo. E longe dos colegas, dos amores, do dia-a-dia, dos referenciais...

No restaurante do hotel eu dividia a segunda garrafa de vinho tinto com o Junior, enquanto a chuva caía, torrencial, através da janela. Nossa conversa sobre o rumo do senado passou para um debate sobre quanto dinheiro faria cada um de nós aceitar sair pelado em capa de revista. Fechamos em R$ 300 mil – sabendo que, no máximo, seríamos convidados a posar nus pra algum fotógrafo em início de carreira por R$ 50 paus. A essa altura, resolvemos subir.

Cada um tinha sua suíte, mas os quartos eram vizinhos. E eram aconchegantes, quentes, mobiliados com uma imensa cama branca que cheirava a amaciante. Naquela cama, três pessoas dormiriam numa boa.

Subi com o firme propósito de sair do elevador direto para o meu quarto, mas não consegui. Ponho a culpa no vinho enquanto, no fundo, eu sei muito bem o que eu quero, e o que eu queria aconteceu: acabamos no quarto dele, os três – eu, ele e a meia garrafa de vinho.

***

Pra mim estava tudo muito bem resolvido. Até pegarmos o vôo.

Nos sentamos, eu na janela, ele no corredor. Junior apertou o cinto, acomodou a cabeça e resmungou um “que prego, Ju...” fechando os olhos pra só abri-los uma hora depois, quando o avião já sobrevoava São Paulo.

Como não tinha conversa, coloquei o fone de ouvido e busquei “Gotan Project” no i-pod.

A música foi o que abriu caminho pra voz de Moisés. O tango me inundou as vísceras. Lembrei daquele peito nu de ontem, que não era o do Caio. Pensei no cheiro de cada um, no desenho dos ombros, dos braços; na musculatura dos peitos e nos pêlos. Foi enquanto pensava nisto que a outra voz, autônoma, veio em meu cérebro argumentar com a de Moisés.

Olhando de cima abaixo aquele homem no acento ao lado – que se proclamava solteiro convicto e com quem eu me dava tão bem – optei por me desfazer daquela culpa. Por que, em realidade, ela não fazia sentido nenhum pra mim.

Aconteceu que me despi do sétimo mandamento ontem à noite, quando antes de deitar a cabeça no peito nu e cheio de particularidades desconhecidas daquele cara, me despi pra ele.

Amanhã pela manhã, o Junior vai voltar a ser, como sempre me refiro a ele pro Caio, só “o Junior, aquele meu amigo do trabalho”.

14 de outubro de 2007

Um

Foram cinco anos acordando juntos. Antes disso, teve ano e meio de namoro com cada um sob seu teto. Eram dois tetos. Até que ele se mudou pro meu apartamento – no Sumaré, perto do metrô... – e virou um teto só.

Um mais um não eram dois e construímos uma vida formada daquelas duas meias pessoas que éramos até nosso encontro.

A intimidade era completa, as fantasias, compartilhadas e (muitas) realizadas. Era perfeito. Até quando a gente discordava havia uma concordância descomunal.

Mas um dia, começou o fim. Percebi isso quando cheguei em casa sonhando em encontrar silêncio, em não ver ninguém, em tirar o sapato, me jogar no sofá e poder não falar, não fazer, não ter a quem responder. Não precisar tomar banho nem ter obrigação de escolher o que a gente ia comer. Eu nunca tenho fome depois de dia tenso de trabalho. E ele não pode ficar sem comer. “Me desregula todo”, fala.

Depois de meses pensando cheguei à conclusão de que a gente devia parar por ali. A insistência acabaria de vez com aquele resto de respeito que sobrava. Foi isso que argumentei. A parte sobre querer ficar sozinha pra curtir silêncio, ficar mais comigo ou conhecer gente, não falei.

Ele ficou triste. Disse que valia a pena tentar mais um pouco, lembrou de viagens, de noites e dias em que trepamos loucamente, da festa surpresa que preparei quando ele entrou nos trinta. Enquanto falava, eu ficava pensando em como a gente se fez feliz. Ele até chorou.

Ontem fez um mês que voltaram a ser dois tetos. O meu é, de novo, só meu. Fico sem fazer nada quando quero e, se me der vontade, pego a bolsa e saio.

Fiz isso na quarta. Foi aniversário do Reinaldo, amigo do trabalho, num bar meio esotérico na Vila (o Reinaldo é todo místico). Foi ótimo, encontrei pessoas, conheci gente nova e lá pelas tantas paguei a conta e fui pegar o carro. Enquanto esperava o manobrista vi, um pouco à frente, um casal conhecido. Casal conhecido, não. Conhecido era o cara... Era ele! Há quase um mês não nos falávamos. Um mês...

Chegou primeiro o carro dele. O meu veio logo atrás. Olhei em volta e só achei um banco de madeira, dos manobristas. Primeiro, quebrei o farol pra em seguida dar com o banco no capô do carro, com toda a força que pude reunir. Bati uma, duas, três vezes e quando percebi a superfície amassada a contento, finalizei jogando o banco preto contra o vidro da frente. Não quebrou, mas fez um trinco de cima abaixo.

8 de outubro de 2007

Polêmica rasa

Na semana em que sai a Playboy de Mônica Veloso, Renan Calheiros pede "um tempo" à nação.

E a polêmica segue, rasa...

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"Ordinária sem moral!", ralhava na mesa de trás uma mulher de seus quarenta e poucos anos. Baixinha, gorda e de pescoço atarracado, pescoço com dobras. Eu comia baby bife mal passado com arroz tingido de carne, fingindo atenção na TV mas de ouvido ligado na gorda indignada.

"Mulher sem vergonha na cara, tem uma filha pequena e sai assim, pelada na revista, é uma imoralidade...". Uma voz de homem interrompeu a mulher saindo em defesa de Monica. "Mas você já viu alguma entrevista com ela? É uma moça inteligente. Pode muito bem apresentar programa na televisão."

"Não vi nem quero ver!", ralhou a gorda. E, mudando de assunto, soltou um gemido de prazer. "Ai, como eu gosto de petit gâteau...".