24 de dezembro de 2007

Aí vem 2008,
e que chegue feliz!


Gente, 2007 está com os dias contados. Final de ano traz as lembranças do que fizemos ou não, do que dissemos, vivemos, ouvimos, escrevemos...e de tudo o que a gente deixou pra depois. Minha lista com promessas de ano novo está na cabeça – não escrevo que é pra ninguém cobrar depois...

Por aqui quero registrar que foi muito legal entrar para a blogosfera, conhecer idéias e histórias de gente que se não fosse a web, seria difícil encontrar.

Valeu todo mundo pela troca!! Tem sido bom demais!

Cristãos ou não, pouco importa, desejo que esse espírito natalino de fraternidade, compreensão, perdão e amor puro contamine a gente e fique impregnado em 2008! Que eu, você e todo mundo possamos no ano novo dar e receber mais tolerância, respeito e amizade!

I get high with a little help from my friends...

Até 2008!!

21 de dezembro de 2007

Aos cacos
quando a eles pertencer


Imagem: llbvn

Com um “basta!” entalado na garganta, fitava o homem no fundo dos olhos. Aquele homem que era seu marido mas que naquele instante, assim como em outros instantes recorrentes de um tempo para cá, parecia um desconhecido a surpreender-lhe a boca do estômago, impiedoso.

Encarou-o, em perplexa decepção, por dez segundos. Nestes dez segundos, couberam seus oito anos juntos, do primeiro beijo até o presente – o casamento, a lua-de-mel, o primeiro de muitos rompantes; os prazeres e as concessões. Conseguiu compactar os anos de convívio em dez angustiantes segundos e neles ainda coube, pela última vez, a dúvida: “vale a pena insistir nisso?”, e a resposta definitiva: “não!”.

O casal ainda se olhava como quem radiografa em despedida o interior alheio, derradeira tentativa de mapear o que passa dentro daquele de quem um dia se foi íntimo mas de repente não se é mais. O “basta!”, há meses trancado na jugular da mulher, irrompeu em um gesto. Extremado, inadequado, equivocado, seu gesto tomou proporções exageradas, sabia disso, mas não era mais possível controlar-se.

Da garganta o “basta!” correu pelos braços tal qual corrente elétrica em sobrecarga. Ao chegar nas pontas dos dedos, a eletricidade que represara puxou a tolha sobre a mesa com toda a força que as mãos delicadas daquela mulher de um metro e sessenta puderam recrutar. Foi o tempo de duas piscadelas, e a mesa posta do café-da-manhã fragmentou-se em cacos empapados de café com leite. Pão, queijo e estilhaços de louça sobre o piso de azulejo verde escuro. A toalha branca, agora manchada com a última refeição a dois, cobria parte da porcelana estilhaçada.

Durante a cena, nenhum dos dois disse palavra e assim permaneceram. Enquanto o homem a olhava atônito, ela levantou-se e foi buscar a bolsa. Dando as costas rumou à porta, disse adeus e informou que outra hora – qualquer hora distante daquela – daria um jeito de buscar suas coisas. Falou assim mesmo, “minhas coisas”, como se fosse pouco o que deixava para trás. Eram pertences reunidos ao longo de oito anos, mas eram muito pouco diante do que em realidade estava deixando naquele apartamento. Sem fazer ruído, fechou a porta e se foi.

Ele permaneceu sentado em meio aos restos de comida, olhando os cacos espalhados pelo chão. Do início da discussão até aquele momento não esboçou reação, só conseguindo retomar a fala quando a mulher já estava lá fora, indo embora pelo elevador. Pouco mais alto que um sussurro, dedicou-lhe quatro palavras terminais, sem raiva nem piedade, sem qualquer emoção. Honestíssimo, balbuciou: “grande filha da puta...”.

17 de dezembro de 2007

Leia-me

Sentei-me, cansada de discussões via MSN e e-mail. Se bater boca cara a cara é desgastante demais, por escrito me dá preguiça.

Cansei de tentar me fazer entender e acabar frustrada por suas interpretações errôneas. Talvez eu não tenha capacidade de explicar o que sinto, talvez a impaciência impeça sua compreensão, mas agora tanto faz, já não importa.

O estrago foi feito. Contudo, tenho uma mania irritante de querer fazer as pazes. Coisa de gente que precisa de aprovação. Não tenho pudor de assumir insegurança e carência – conheço o material de que sou feita e sei que as fragilidades é que dão suporte à minha coluna vertebral. Sem elas, não seria capaz de ficar em pé.

Quero abrir aqui uma bandeira branca que despeje paz nesse ponto final. Quero ficar de bem porque, a despeito das agressões, só consigo querer o bem de quem um dia foi meu bem e me fez bem.

Não posso tomar cerveja com você, ainda não. Se eu for, corro risco de recaída e aí todo esse trabalho para te tirar de mim iria por água abaixo. Uma hora vai dar, agora, não.

Para terminar, te dedico um poema – o último. É Mario Quintana (gostaria que fosse meu) e traduz com precisão impressionante tudo o que eu não consegui te fazer entender sobre mim. Sem esperar que entenda agora, seguem os versos:

"Por favor não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu
Se ninguém resiste a uma análise profunda
Quanto mais eu...
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei perfeito amor."

16 de dezembro de 2007

Será que desentope?

Época de Natal faz todo mundo ficar mais bonzinho que o normal. É o tal espírito natalino.

Acho que o tempo tem entupido esse clima fraternal em alguma parte de mim que não alcanço. É que antigamente, mal chegava dezembro a aura natalina já havia me embrulhado pra presente. Eu era toda empolgação, irmandade e panetones. Não sou mais.

Descobri isso na sexta-feira, enquanto esperava o sinal ficar verde no cruzamento da alameda Ministro Rocha Azevedo com a avenida Paulista.

Estava lá eu, parada dentro do carro, quando um menino carregando uma caixa de chicletes bateu no vidro com a pergunta “tia, qual é a capital da França?”. Permaneci olhando para ele, provavelmente com cara de besta, enquanto pensava “o que esse menino tá falando?!”. Uns dez segundos depois, respondi “Paris” e ele me passou a rima: “compra esse chiclete pra fazer um menino feliz?”.

Dei risada, agradeci e disse que estava sem dinheiro, não comprei. O sinal abriu, engatei primeira e fui. Perdi a chance de dar vazão ao espírito do Natal; deixei de fazer um menino feliz e fiquei com isso na cabeça.

Preciso desentupir minha fraternidade.

10 de dezembro de 2007

Para enlouquecer...

Para enlouquecer não basta querer. Antes fosse...
Loucura requer profunda disposição interna.

Dá manchete: "Insanidade rouba as rédeas da Razão e toma para si a Consciência".

Auto-controle é coisa que escapa desde o começo, no entanto, ao invés de entregar-se ao destino - ou ao descontrole - desperdiça a vida em uma luta vã por recuperar o tal controle, mero fantasma fugidio.

Esquivar-se...sumir, desaparecer, escapar. Livrar-se de si para renascer outro.

Que tal enlouquecer para poder tornar-se outro ser?

Estilhaçar um espaço invisível que mora entre o peito e a cabeça.

Fragmentar o juízo em partículas cortantes – cortantes para quem?

Mergulhar para dentro. Cegar.

Para enlouquecer não basta desespero. Antes fosse...
Loucura requer entrega completa e renúncia absoluta.
É difícil demais abrir mão dessa ilusão apelidada controle.



Arthur Bispo do Rosário (1909-1989)
Foi parar em manicômio após ver Jesus
descer dos céus cercado
por sete anjos azuis.
Depois de enlouquecer, virou artista.



Arthur Bispo do Rosário, auto-retrato
O conjunto de sua obra está no Museu
de Imagens do Inconsciente
,
no Rio de Janeiro.


Para saber um pouquinho mais sobre Bispo do Rosário
clique AQUI
Para ver coleções de outros artistas da loucura, AQUI

2 de dezembro de 2007

curtas
02

O ser encostou-se à primeira criatura dotada de reservas que encontrou. Já havia feito assim outras vezes e sabia que dava certo. A criatura no começo não reparou. Depois, aceitou, com esperanças de transformar a doação em troca. Foi mal-sucedida. Um dia, deu-se conta de que estava fraca – deixara-se sugar além do limite. Em tempo, extirpou a ventosa que lhe bebia as energias. Sangrou, mas deu para estancar. Seguiu adiante com as costas marcadas – a cicatriz deu quelóide – mas o que vale é que seguiu.

Nunca mais teve notícias do sugador. Há quem diga que é bicho, outros, que é fungo; o ser sente-se humano, não importa. Seja o que for, seu destino é parasitar.

27 de novembro de 2007

Vício e volúpia


Imagem: Lu Tomaselli

Olhou em volta para conferir se alguém reparava. Ninguém. Correu ao banheiro, onde fez força para expulsar de seu corpo a cápsula que carregava como supositório. Era o único meio de passar incólume pela revista.

Odiava voltar para a clínica nas noites de domingo, depois de passar o dia com a família “no mundo de lá”. Além da aversão a ficar presa, tinha ojeriza pelas enfermeiras que a revistavam. Eram todas baixinhas e sebosas, suarentas até em dias frios.

Ao despir-se para a revista, sempre imaginava que a enfermeira – homem mal-acabado – iria surpreendê-la, sacando de trás da braguilha um imenso pênis para currá-la. A de hoje era especialmente asquerosa: brotava de sua testa uma bolota de gordura acumulada. Dizia que era pinta, mas não era.

Expelida, a cápsula comprida foi lavada cuidadosamente com água e sabão. Tratou de enxugá-la bem. Mirava-se no espelho, com o pó nas mãos, pensando no sacrifício semanal. “Uma pessoa disposta a trazer à clínica de reabilitação em que está internada farinha escondida no rabo, deve de fato ser interditada.” Zoé via fundamento no pedido feito pelos pais à Justiça. Tinha consciência de que, desde sempre, levara a vida passando dos limites – seus e dos outros. Mas, a essa altura, já não importava.

Com cuidado para não desperdiçar, abriu o recipiente e com a unha do mindinho fez valer a fungada dominical. De olhos vidrados no espelho, chupou os resquícios do pó no dedo, o que provocava uma leve e gostosa dormência na ponta da língua.

Prendia e soltava os cabelos, sem decidir como preferia. Não via a hora de estar livre para dar seus tecos de forma decente. Sentia falta do ritual cocainômano, das carreirinhas divididas igualmente, da notinha de dólar com que tinha o hábito de aspirar. Tinha de ser nota novinha, senão dava nojo.

Soltando os cachos, deprimiu-se pensando nos pais que desde sua adolescência gastavam rios de dinheiro na tentativa de livrá-la do vício. Angustiou-se ao pensar no filho de oito anos. “Praticamente filho de chocadeira, o coitadinho”, dizia consigo, fitando as pupilas negras. “Melhor pra ele, o pai talvez lhe baste.”

Novamente abriu a cápsula: só mais uma fungada. Encarou os cabelos desbotados e reparou nos sulcos ao redor da boca e dos olhos. Marcavam mais idade do que os trinta e oito que tinha. “Pele marcada de sol e farinha.” Desculpou-se com a imagem no espelho – reminiscências da mulher que fora.

Depois, então, sorriu, guardando de volta no bolso, como tesouro, a substância provedora de nervosas alegrias.

Sorria porque a noite findava e a madrugada levaria até seu quarto o Beto, caso antigo, colega de clínica e de vício; velho companheiro das bocadas e de noites consumidas por volúpia em motéis de estrada.

22 de novembro de 2007

Brilham olhos esmeralda no
Festival de Cinema de Brasília


Link para o sucesso de uma amiga.

Conheço essa moça aí da foto há mais de década.

A Carol do ginásio virou atriz: Ana Carolina Lima. E ontem, no Festival de Cinema de Brasília, o público aplaudiu de pé sua atuação como Cora, protagonista do curta “Espalhadas pelo ar” (dir. Vera Egito).

Não é pra qualquer uma...

Por fora, ela é linda (morena dos olhos verdes, uau!), mas nunca se acomodou na bela casca. Por isso, sua beleza de dentro é capaz de cegar invejosos e desavisados.

Pra fechar, a Carol é dotada de uma loucura boa demais, daquela espécie de loucura branca, sabe? Loucura que salva.


Carol: merd pra você!

O sucesso é dela, pra nossa sorte!

19 de novembro de 2007

curtas
01

Risquei mapa para me desfazer dos teus restos.
Dispersei-os.
Haverá de se perder em meu caminho de volta, para sempre
inverso a encontrar-me.

17 de novembro de 2007

Pulsa o ventre


Imagem: Assarhaddon

Meu útero me maltrata demais de uns tempos pra cá. Antes não era assim. Acho que é revanchismo. Talvez se sinta subaproveitado e, numa crise de vazio existencial, tenha decidido me cutucar mensalmente. Imaturidade, sem dúvida. Jeito infantil de chamar a atenção, de fazer birra, dói para se mostrar presente.

Se fechar os olhos posso enxergar o movimento: contrai e dilata, contrai e dilata... De quando em quando, se contorce, quase vira do avesso e depois volta ao movimento constante, em exercício doloroso enquanto descama e expele a célula não fecundada. Será esse o motivo da revanche?

Pois é bom que saiba: não será abrigo de feto tão cedo. A estrada é longa e curvilínea e, como não cheguei ao ponto em que consiga ver o horizonte, sequer posso lhe prometer que nesta vida cumprirá a função primordial. Se um dia houver neném, até lá há demora.

Peço paciência e um bocado de auto-sugestão. Analgésicos me dão sono, por isso se convença com os placebos. Chá e bolsa de água quente são minha maneira de te cuidar. Por favor, colabore.

"...mero incidente corriqueiro
ser mulher a vida inteira..."
(Céu, "Bobagem", 2005)

15 de novembro de 2007

Anônimo S.A.
(vs. 2.0)

Subia a escada ainda em dúvida. A cada degrau, uma crítica. No caminho entre o tentar e o desistir, lembrou da terapeuta, das palavras da terapeuta. “O que você tem a perder? Mesmo que seja assim, ridículo como você está dizendo, é anônimo. Ninguém vai saber...”.

***

Filho único de mãe super-protetora e pai ausente, Raul foi concebido quando o casal já havia desistido de filhos e montado um canil. Aconteceu que as regras de Alcina atrasaram. Hipocondríaca, correu ao médico atribuindo a um tumor nos ovários a menopausa precoce. Doutor Abreu de Castro tranqüilizou a mulher: estava grávida.

Alcina voltou para casa com um novelo de lã amarela e agulhas de tricô novas em folha. No dia seguinte, o primeiro sapatinho do bebê estava pronto. Até hoje ela guarda o tal sapatinho e todo ano o tira do mofo – lava na mão, que é para não estragar. E se mesmo assim ele ameaça se desfazer, a mulher remenda. Em quarenta anos, nunca passou um aniversário de Raul sem tirar o sapatinho do maleiro mofado.

***

O menino cresceu estudioso. Não criou costume de jogar bola na vizinhança para não perturbar a mãe, que sofria dos nervos se via o filho sangrar pelos joelhos.

Para a família, a timidez patológica era excentricidade, “coisa de gente inteligente demais”, defendia a mãe. No entanto, para o adolescente Raul pouco importava o que ela dizia, porque quando se encarava nu em frente ao espelho, sua figura branca de ombros encurvados gritava: “esquisito!”

Foi assim que o rapaz aprendeu a se encolher. Quanto mais despercebido passasse, melhor. Aos dezoito, se transformou numa concha e nada nem ninguém era capaz de penetrar sua casca.

Há cerca de seis meses, quando a mãe teve pneumonia das bravas e passou dias internada, se deu conta de que ela envelheceu. Sentiu, num choque, a rapidez com que a vida passava; olhando para trás, viu uma folha em branco. Lembrou-se que entrou nos quarenta sem ter jamais namorado. Não que fosse virgem, isso, não – aprendera com o pai o caminho das putas.

A folha em branco seguia a lhe esmagar os nervos dias depois, quando o chefe percebeu que Raul desenvolvera um tique: sem mais nem menos, esticava a perna direita, dando chutes no ar. Chamado na diretoria da contabilidade, recebeu do patrão a indicação de uma terapeuta e quinze dias de licença.

Desde a primeira sessão, há dois meses, as coisas vêm mudando – devagar, mas mudando. Curada, a mãe deu agora para se preocupar com a história de o filho fazer terapia. Diz que ele paga alguém para colocá-los distantes e chegou até a chorar, clamando que ele suspendesse as sessões. Raul quase cedeu.

No último atendimento, enquanto aguardava a hora na sala de espera, viu um anúncio de revista que lhe pareceu interessante. “Introvertidos anônimos. Pessoas extremamente tímidas: reúnam-se para conversar sobre suas dificuldades na vida social.” A vontade de conhecer o lugar lhe meteu medo de ser ridículo. Assim mesmo, foi.

Acreditava que aquele, talvez, fosse o único lugar onde pudesse encontrar seus pares, onde achasse gente que fosse também meio gente e meio concha. Aí, sim, ele deixaria que alguém lhe penetrasse a casca.

***

Mirou no topo da escada a placa que indicava “Introvertidos Anônimos, AQUI”. Quando mais uma vez experimentou a aflição de pensar que alguém poderia descobri-lo freqüentando o serviço, releu, num sussurro lento: “a-nô-ni-mos”.

Acertou a gravata, ajeitou as calças e conferiu, com a língua, a limpeza dos dentes. Subiu, esperançoso de resgatar ali uma dignidade que ainda não conhecia. Esperançoso de aprender, aos quarenta, a fazer com que uma mulher comum, amadora, pulsasse por ele. Subiu para fazer pulsar qualquer mulher que fosse anônima.

* Imagem: "O Ovo"
Tarsila do Amaral, 1928

10 de novembro de 2007

Sigo pedaços de pão


Foto: inbeesible

Não me cerque. Não é porque foi bem-vindo duas vezes que haverá terceira. E não me exija coerência, coisa sem pé nem cabeça que se inventou. Sou gente, não número. Só matemática pode ser exata, eu, não. Ontem queria você, hoje mudei de idéia.

Não me condene. Somos tão opostos que de nós dois até poderia sair coisa boa, mas não vai. É essa tua ânsia de nexo que me põe distante. Tua harmonia está nos números, não nos sujeitos. Tudo em você é limpinho – quase estéril. Cada coisa no devido lugar; do lado esquerdo, camisas brancas, no meio, as coloridas. Pretas penduradas na parte direita do armário.

Minha vontade é de te virar do avesso, mas ao menor sinal de que vou te descabelar, saca aquele pente que leva no bolso e começa a ajeitar os fios. Até os fios do cabelo têm cada um seu lugar.

De pequena, adivinha qual era meu conto de fadas preferido? Na biblioteca da escolinha, as meninas disputavam A bela adormecida. Eu, já aos seis, não tecia expectativas de ser salva por príncipe encantado. Achava, aliás, aquela figura sobre o cavalo branco, vestindo capa vermelha e chapéu aveludado, muitíssimo monótona. Que salvação pode-se esperar de um homem loirinho dos olhos azuis, parecido com Leonardo Di Caprio, montado naquele cavalo virginal? Pra onde um cavalo desses me levaria?

Como não sou afeita a situações seguras, lá na biblioteca da escolinha eu subia no banco e me esticava toda, até tocar os dedinhos no volume que me enchia de encanto.
Qual é meu conto? Joãozinho e Maria.

28 de outubro de 2007

Clausura

Sábado com sol. Parquinho, meu neto de quatro anos, gira-gira e balanço. Lembro das cores – eram muitas. Sob o amarelo dourado daquela manhã de primavera, uma profusão de azuis, vermelhos e verdes em movimento compassado com os brinquedos. Os cabelos pretos do meu neto escorriam sobre sua testa.

Das últimas coisas que vi, quero guardar seu sorriso de dentes de leite e boca vermelha. Vermelho vivo, vermelho-saúde.

Dei a ele algodão doce. Sorri e olhei em volta. Nesta hora, o parquinho foi ficando distante e os sons passaram a chegar aos meus ouvidos em câmera lenta, enquanto as cores sumiam. Tive tempo de ver olhos arregalados de neto e ouvir um chamado que ecoava longe: ”VÔ?!”.

Abri os olhos com o rosto colado na grama e mal alinhado àquele corpo que não mais me obedecia. De nariz enfiado no mato, senti cheiro de terra regada, cheiro de terra úmida. Tentei mais uma vez me levantar, em vão. O corpo não respondia.

De repente, de todas as cores só ficou a escuridão.

***

Não sei exatamente quanto tempo passei sem consciência. Pela conversa dos que me cercam, foram dias. Acontece agora que, apesar de consciente, não tenho como demonstrar que acordei.

Não abro os olhos e não consigo mexer nenhum músculo, nenhum maldito músculo deste corpo que só faz pesar sobre a cama. Nem quando Lina fica horas ao meu lado e pede “aperta minha mão se estiver escutando, pai...”. Toda vez estou escutando, mas não consigo apertar sua mão.

Ignorando que eu esteja acordado, as pessoas falam do meu “caso” como se eu não estivesse aqui. Entre vozes de parentes, médicos e enfermeiras, Carmina Burana toca na minha cabeça, sem cessar. É sombria e tensa a trilha sonora da minha escuridão.

Os doutores garantem para Amália que não estou sofrendo; afirmam convictos que, “conforme as ressonâncias apontam”, não posso sentir nada. Falam coisas sobre meu cérebro ter sido “afetado” e explicam com didática porque os “neurônios morreram”. Por fim, baixam a voz em tom de pesar, ao revelar para Amália a existência de uma “área necrosada” e a alta probabilidade de “seqüelas severas, caso sobreviva”.

No entanto, contrariando as garantias confiadas à tecnologia, posso perceber tudo o que acontece ao meu redor. A despeito dos exames, eu sinto e ouço, perfeitamente. Sinto o toque das mãos finas da Amália no meu rosto – o mesmo toque de três décadas atrás, quando nos conhecemos. E escuto seu choro quando, depois de tentar a todo custo arrancar uma reação do meu corpo inerte, desiste e verte em lágrimas. Gosto quando ela chora de rosto colado no meu. Seu pranto escorre até meus lábios secos e posso sentir o gosto do sal.

Aqui, me alimentam pelas veias. Outro dia, uma das enfermeiras disse que não encontrava mais as do braço. Começaram, então, a enfiar a agulha na minha coxa esquerda. Me desespero por não conseguir pedir que parem. Seria maravilhoso poder descansar a consciência.

Preso dentro de mim nesta UTI, tenho ultimamente pensado muito em suicídio. Em eutanásia também, mas o direito – aos olhares alheios ilegítimo – de acabar eu mesmo com minha vida é tema da maior parte dos meus pensamentos. Se meu corpo voltasse a me pertencer por apenas cinco minutos, daria um jeito de acabar com tudo. Escolheria maneira rápida e, na medida do possível, emocionante. Cair quarenta metros, livre, na direção de uma cachoeira pedregosa seria um modo de morrer com emoção.

Tem gente que escolhe formas mais trabalhosas de acabar com a vida. Eu faria de forma que não demorasse. Sinto preguiça só de pensar em me matar como Sylvia Plath, por exemplo (“Ariel” é livro de cabeceira da Amália – a versão original, em inglês). A poeta podia ter cortado os pulsos – forma mais dramática de suicídio, tipicamente feminina – ou dado um tiro certeiro nas têmporas. Mas, não. Sylvia abriu o gás de cozinha e esperou que a vida fosse embora aos poucos.

Penso a beça nessas coisas. No entanto, de nada valem estes pensamentos, já que estou fadado a ser mantido vivo e inerte com uma agulha espetada na coxa, até o dia em que esta minha consciência resolver sair de cena e descansar.

Quando chegar essa hora, ao invés da Carmina Burana que me martela a mente, tensa, quero que uma melodia de paz reverbere em mim. Quero morrer numa tarde de sol bem amarela e, ao descer pelo buraco na terra, meu último desejo será o de ser ninado por uma voz de mulher entoando a Ave Maria, de Gounod.

21 de outubro de 2007

Não trairás...
trairás


Desenho gentilmente cedido
pelo artista gaúcho Gilmar Fraga

outros trabalhos do desenhista
em
Fragadesenhos

Talvez porque eu tenha estudado em colégio de padres, talvez porque tenha recebido três sacramentos – fui até a crisma –, talvez porque viva num país católico...fecho os olhos nesse vôo Porto Alegre-São Paulo tomada de uma alegria quase infantil, mas também cheia de culpa. “Não trairás”. A voz grossa vem do cérebro, autônoma: voz de Moisés.

De outro pedaço do cérebro, cheia de vida própria, outra voz pergunta o por quê da crise. “Oras, você SÓ passou uma noite com o colega do acento ao lado”, enfatizava. “Traição é fazer coisa muito mais grave que isso.” Olho pra ele e confiro. Faz sentido.

Estou com 32 anos. Com o Caio, há seis. Há cinco sem deitar a cabeça em um peito nu que não seja o dele.

Vim a Porto Alegre em um julho de frio úmido, participar de uma audiência chata em defesa de um empresário estúpido do interior de São Paulo. Pelo menos a companhia na viagem foi espetacular.


***

Conheci o Junior no primeiro dia de escritório. Na sexta-feira seguinte já ficamos amigos, durante um happy hour que se estendeu até as cinco da madrugada, acabando na pista de uma boate no Itaim. Naquela época, fazia um ano que eu estava com o Caio. Deitava a cabeça em um único peito nu havia 366 dias (ano bissexto).

Eu estava com meus novos colegas de trabalho desde as 10h da manhã passada; trabalhamos o dia todo, emendamos o serviço num chope perto do escritório e lá pelas tantas resolvemos sair daquela mesinha apertada e ir dançar.

Meu novo amigo tinha um quê de gente desprendida, o que fazia dele mais atraente à medida que conversávamos. Na boate, passei ao uísque com energético, porque a cerveja estava dando sono. Meu namoro não foi tema da conversa e Caio tinha ido visitar os pais no interior. Resultado: passei a noite com o Junior.

Mas a partir da segunda-feira seguinte, dia após dia fomos nos tornando amigos. Só amigos e muito amigos. A noite de tesão virou assunto nosso de fim de happy hour, quando sobrávamos só eu e ele na mesa úmida de cerveja. Todo mundo sempre ia embora e a gente ficava pra saideira. Essa era a hora de por em dia conversas que não interessavam aos outros: direito autoral, filosofia, política...

Só que aquela noite tinha sido cinco anos atrás e, depois dela, nunca mais deitei a cabeça num peito nu que não fosse o do Caio. Até a noite passada.

***

Porto Alegre estava chuvosa, fria e cansativa. No entanto, mesmo naquela noite em que os termômetros marcavam menos dez graus, tínhamos que comemorar o acordo que conseguimos na audiência da tarde. Nosso cliente, o empresário estúpido do interior de São Paulo, ia ter que desembolsar muito pouco pro infeliz que o processara.

Lá fomos nós, comemorar como tantas vezes comemoramos. Só que, ao contrário das outras vezes (com exceção da primeira), a celebração acabou em café da manhã. Na cama.

Pra falar a verdade, foi muito melhor que da primeira vez, porque a gente estava à vontade – tão à vontade quanto no dia em que cada um veio ao mundo. E longe dos colegas, dos amores, do dia-a-dia, dos referenciais...

No restaurante do hotel eu dividia a segunda garrafa de vinho tinto com o Junior, enquanto a chuva caía, torrencial, através da janela. Nossa conversa sobre o rumo do senado passou para um debate sobre quanto dinheiro faria cada um de nós aceitar sair pelado em capa de revista. Fechamos em R$ 300 mil – sabendo que, no máximo, seríamos convidados a posar nus pra algum fotógrafo em início de carreira por R$ 50 paus. A essa altura, resolvemos subir.

Cada um tinha sua suíte, mas os quartos eram vizinhos. E eram aconchegantes, quentes, mobiliados com uma imensa cama branca que cheirava a amaciante. Naquela cama, três pessoas dormiriam numa boa.

Subi com o firme propósito de sair do elevador direto para o meu quarto, mas não consegui. Ponho a culpa no vinho enquanto, no fundo, eu sei muito bem o que eu quero, e o que eu queria aconteceu: acabamos no quarto dele, os três – eu, ele e a meia garrafa de vinho.

***

Pra mim estava tudo muito bem resolvido. Até pegarmos o vôo.

Nos sentamos, eu na janela, ele no corredor. Junior apertou o cinto, acomodou a cabeça e resmungou um “que prego, Ju...” fechando os olhos pra só abri-los uma hora depois, quando o avião já sobrevoava São Paulo.

Como não tinha conversa, coloquei o fone de ouvido e busquei “Gotan Project” no i-pod.

A música foi o que abriu caminho pra voz de Moisés. O tango me inundou as vísceras. Lembrei daquele peito nu de ontem, que não era o do Caio. Pensei no cheiro de cada um, no desenho dos ombros, dos braços; na musculatura dos peitos e nos pêlos. Foi enquanto pensava nisto que a outra voz, autônoma, veio em meu cérebro argumentar com a de Moisés.

Olhando de cima abaixo aquele homem no acento ao lado – que se proclamava solteiro convicto e com quem eu me dava tão bem – optei por me desfazer daquela culpa. Por que, em realidade, ela não fazia sentido nenhum pra mim.

Aconteceu que me despi do sétimo mandamento ontem à noite, quando antes de deitar a cabeça no peito nu e cheio de particularidades desconhecidas daquele cara, me despi pra ele.

Amanhã pela manhã, o Junior vai voltar a ser, como sempre me refiro a ele pro Caio, só “o Junior, aquele meu amigo do trabalho”.

14 de outubro de 2007

Um

Foram cinco anos acordando juntos. Antes disso, teve ano e meio de namoro com cada um sob seu teto. Eram dois tetos. Até que ele se mudou pro meu apartamento – no Sumaré, perto do metrô... – e virou um teto só.

Um mais um não eram dois e construímos uma vida formada daquelas duas meias pessoas que éramos até nosso encontro.

A intimidade era completa, as fantasias, compartilhadas e (muitas) realizadas. Era perfeito. Até quando a gente discordava havia uma concordância descomunal.

Mas um dia, começou o fim. Percebi isso quando cheguei em casa sonhando em encontrar silêncio, em não ver ninguém, em tirar o sapato, me jogar no sofá e poder não falar, não fazer, não ter a quem responder. Não precisar tomar banho nem ter obrigação de escolher o que a gente ia comer. Eu nunca tenho fome depois de dia tenso de trabalho. E ele não pode ficar sem comer. “Me desregula todo”, fala.

Depois de meses pensando cheguei à conclusão de que a gente devia parar por ali. A insistência acabaria de vez com aquele resto de respeito que sobrava. Foi isso que argumentei. A parte sobre querer ficar sozinha pra curtir silêncio, ficar mais comigo ou conhecer gente, não falei.

Ele ficou triste. Disse que valia a pena tentar mais um pouco, lembrou de viagens, de noites e dias em que trepamos loucamente, da festa surpresa que preparei quando ele entrou nos trinta. Enquanto falava, eu ficava pensando em como a gente se fez feliz. Ele até chorou.

Ontem fez um mês que voltaram a ser dois tetos. O meu é, de novo, só meu. Fico sem fazer nada quando quero e, se me der vontade, pego a bolsa e saio.

Fiz isso na quarta. Foi aniversário do Reinaldo, amigo do trabalho, num bar meio esotérico na Vila (o Reinaldo é todo místico). Foi ótimo, encontrei pessoas, conheci gente nova e lá pelas tantas paguei a conta e fui pegar o carro. Enquanto esperava o manobrista vi, um pouco à frente, um casal conhecido. Casal conhecido, não. Conhecido era o cara... Era ele! Há quase um mês não nos falávamos. Um mês...

Chegou primeiro o carro dele. O meu veio logo atrás. Olhei em volta e só achei um banco de madeira, dos manobristas. Primeiro, quebrei o farol pra em seguida dar com o banco no capô do carro, com toda a força que pude reunir. Bati uma, duas, três vezes e quando percebi a superfície amassada a contento, finalizei jogando o banco preto contra o vidro da frente. Não quebrou, mas fez um trinco de cima abaixo.

8 de outubro de 2007

Polêmica rasa

Na semana em que sai a Playboy de Mônica Veloso, Renan Calheiros pede "um tempo" à nação.

E a polêmica segue, rasa...

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"Ordinária sem moral!", ralhava na mesa de trás uma mulher de seus quarenta e poucos anos. Baixinha, gorda e de pescoço atarracado, pescoço com dobras. Eu comia baby bife mal passado com arroz tingido de carne, fingindo atenção na TV mas de ouvido ligado na gorda indignada.

"Mulher sem vergonha na cara, tem uma filha pequena e sai assim, pelada na revista, é uma imoralidade...". Uma voz de homem interrompeu a mulher saindo em defesa de Monica. "Mas você já viu alguma entrevista com ela? É uma moça inteligente. Pode muito bem apresentar programa na televisão."

"Não vi nem quero ver!", ralhou a gorda. E, mudando de assunto, soltou um gemido de prazer. "Ai, como eu gosto de petit gâteau...".


14 de setembro de 2007