20 de junho de 2008

Ser pedra

Ele queria ver as pessoas em branco. Telas virgens cujas impressões fossem pintadas no espaço vazio com tons de realidade, sem impressões, imprecisões ou achismos. Sem "quases".

"É uma pena que com a troca de três olhares e cinco palavras nos precipitemos pintando o branco da figura alheia com cores inventadas", ele disse. "Essa criação fica sempre aquém ou além do que o outro é de fato."

Ele acha que as curvas desenhadas precipitadamente acabam borradas pelas sombras da verdade. Frustração entristece, frustração fortalece. "Fortalece?" Respondi que sim. "Toda coisa que faz sofrer fortalece?" "Acho que sim", eu disse. "Que pena, né..."

Ele ficou ali olhando para mim sem me enxergar, olhando para mim e enxergando pensamentos. Em seguida, retrucou:

"Felizes são as pedras, que seguem firmes em sua dureza cinza e impenetrável. Deve ser confortável nascer pedra, viver pedra, sentir-se pedra: imóvel, quase eterna, a pedra sabe desde sempre do que deve ter medo. E sabe também que não há como fugir. Ventos e águas sempre estarão ao redor, moldando-as infinitamente."

9 de junho de 2008

Cabeça de abóbora

A história tinha todos os detalhes que pede um conto de fadas. Baile com músicos tocando ao vivo; princesa de vestido, príncipe cheiroso, dança de rostinho colado e carruagem. Teve também um sapatinho, que não era de cristal mas foi perdido no meio do caminho. De mãos dadas, um dos dois até ajoelhou-se.

Mas não existe conto de fadas além dos livros. Quer dizer, vai ver que até existe, mas nessa vida real o cronograma acaba embriagado e a princesa vira abóbora antes da hora.

Quando percebe, está em um baile onde se dança samba --nada contra samba, muito pelo contrário, mas a princesa só dança samba no estilo nórdico. Seu sapatinho se perdeu graças a um tropeção na escada, e o tropeção só aconteceu por conta dos excessos etílicos. Tais excessos são culpados, também, pelo ajoelhar-se no fim da noite.

Lugares onde se vende bebida alcoólica deviam ser todos planos, sem degraus. Naquele lugar, havia degraus --muitos. Por causa deles, a princesa virou abóbora bem ali: estatelou-se de joelhos, no fim da escada. Ao menos o príncipe foi gentil entregando-a a salvo em sua morada.

No dia seguinte, hirudoid para o joelho, dramin para o estômago e uma vontade imensa de enfiar a cabeça para sempre dentro de uma abóbora.