27 de novembro de 2007

Vício e volúpia


Imagem: Lu Tomaselli

Olhou em volta para conferir se alguém reparava. Ninguém. Correu ao banheiro, onde fez força para expulsar de seu corpo a cápsula que carregava como supositório. Era o único meio de passar incólume pela revista.

Odiava voltar para a clínica nas noites de domingo, depois de passar o dia com a família “no mundo de lá”. Além da aversão a ficar presa, tinha ojeriza pelas enfermeiras que a revistavam. Eram todas baixinhas e sebosas, suarentas até em dias frios.

Ao despir-se para a revista, sempre imaginava que a enfermeira – homem mal-acabado – iria surpreendê-la, sacando de trás da braguilha um imenso pênis para currá-la. A de hoje era especialmente asquerosa: brotava de sua testa uma bolota de gordura acumulada. Dizia que era pinta, mas não era.

Expelida, a cápsula comprida foi lavada cuidadosamente com água e sabão. Tratou de enxugá-la bem. Mirava-se no espelho, com o pó nas mãos, pensando no sacrifício semanal. “Uma pessoa disposta a trazer à clínica de reabilitação em que está internada farinha escondida no rabo, deve de fato ser interditada.” Zoé via fundamento no pedido feito pelos pais à Justiça. Tinha consciência de que, desde sempre, levara a vida passando dos limites – seus e dos outros. Mas, a essa altura, já não importava.

Com cuidado para não desperdiçar, abriu o recipiente e com a unha do mindinho fez valer a fungada dominical. De olhos vidrados no espelho, chupou os resquícios do pó no dedo, o que provocava uma leve e gostosa dormência na ponta da língua.

Prendia e soltava os cabelos, sem decidir como preferia. Não via a hora de estar livre para dar seus tecos de forma decente. Sentia falta do ritual cocainômano, das carreirinhas divididas igualmente, da notinha de dólar com que tinha o hábito de aspirar. Tinha de ser nota novinha, senão dava nojo.

Soltando os cachos, deprimiu-se pensando nos pais que desde sua adolescência gastavam rios de dinheiro na tentativa de livrá-la do vício. Angustiou-se ao pensar no filho de oito anos. “Praticamente filho de chocadeira, o coitadinho”, dizia consigo, fitando as pupilas negras. “Melhor pra ele, o pai talvez lhe baste.”

Novamente abriu a cápsula: só mais uma fungada. Encarou os cabelos desbotados e reparou nos sulcos ao redor da boca e dos olhos. Marcavam mais idade do que os trinta e oito que tinha. “Pele marcada de sol e farinha.” Desculpou-se com a imagem no espelho – reminiscências da mulher que fora.

Depois, então, sorriu, guardando de volta no bolso, como tesouro, a substância provedora de nervosas alegrias.

Sorria porque a noite findava e a madrugada levaria até seu quarto o Beto, caso antigo, colega de clínica e de vício; velho companheiro das bocadas e de noites consumidas por volúpia em motéis de estrada.

22 de novembro de 2007

Brilham olhos esmeralda no
Festival de Cinema de Brasília


Link para o sucesso de uma amiga.

Conheço essa moça aí da foto há mais de década.

A Carol do ginásio virou atriz: Ana Carolina Lima. E ontem, no Festival de Cinema de Brasília, o público aplaudiu de pé sua atuação como Cora, protagonista do curta “Espalhadas pelo ar” (dir. Vera Egito).

Não é pra qualquer uma...

Por fora, ela é linda (morena dos olhos verdes, uau!), mas nunca se acomodou na bela casca. Por isso, sua beleza de dentro é capaz de cegar invejosos e desavisados.

Pra fechar, a Carol é dotada de uma loucura boa demais, daquela espécie de loucura branca, sabe? Loucura que salva.


Carol: merd pra você!

O sucesso é dela, pra nossa sorte!

19 de novembro de 2007

curtas
01

Risquei mapa para me desfazer dos teus restos.
Dispersei-os.
Haverá de se perder em meu caminho de volta, para sempre
inverso a encontrar-me.

17 de novembro de 2007

Pulsa o ventre


Imagem: Assarhaddon

Meu útero me maltrata demais de uns tempos pra cá. Antes não era assim. Acho que é revanchismo. Talvez se sinta subaproveitado e, numa crise de vazio existencial, tenha decidido me cutucar mensalmente. Imaturidade, sem dúvida. Jeito infantil de chamar a atenção, de fazer birra, dói para se mostrar presente.

Se fechar os olhos posso enxergar o movimento: contrai e dilata, contrai e dilata... De quando em quando, se contorce, quase vira do avesso e depois volta ao movimento constante, em exercício doloroso enquanto descama e expele a célula não fecundada. Será esse o motivo da revanche?

Pois é bom que saiba: não será abrigo de feto tão cedo. A estrada é longa e curvilínea e, como não cheguei ao ponto em que consiga ver o horizonte, sequer posso lhe prometer que nesta vida cumprirá a função primordial. Se um dia houver neném, até lá há demora.

Peço paciência e um bocado de auto-sugestão. Analgésicos me dão sono, por isso se convença com os placebos. Chá e bolsa de água quente são minha maneira de te cuidar. Por favor, colabore.

"...mero incidente corriqueiro
ser mulher a vida inteira..."
(Céu, "Bobagem", 2005)

15 de novembro de 2007

Anônimo S.A.
(vs. 2.0)

Subia a escada ainda em dúvida. A cada degrau, uma crítica. No caminho entre o tentar e o desistir, lembrou da terapeuta, das palavras da terapeuta. “O que você tem a perder? Mesmo que seja assim, ridículo como você está dizendo, é anônimo. Ninguém vai saber...”.

***

Filho único de mãe super-protetora e pai ausente, Raul foi concebido quando o casal já havia desistido de filhos e montado um canil. Aconteceu que as regras de Alcina atrasaram. Hipocondríaca, correu ao médico atribuindo a um tumor nos ovários a menopausa precoce. Doutor Abreu de Castro tranqüilizou a mulher: estava grávida.

Alcina voltou para casa com um novelo de lã amarela e agulhas de tricô novas em folha. No dia seguinte, o primeiro sapatinho do bebê estava pronto. Até hoje ela guarda o tal sapatinho e todo ano o tira do mofo – lava na mão, que é para não estragar. E se mesmo assim ele ameaça se desfazer, a mulher remenda. Em quarenta anos, nunca passou um aniversário de Raul sem tirar o sapatinho do maleiro mofado.

***

O menino cresceu estudioso. Não criou costume de jogar bola na vizinhança para não perturbar a mãe, que sofria dos nervos se via o filho sangrar pelos joelhos.

Para a família, a timidez patológica era excentricidade, “coisa de gente inteligente demais”, defendia a mãe. No entanto, para o adolescente Raul pouco importava o que ela dizia, porque quando se encarava nu em frente ao espelho, sua figura branca de ombros encurvados gritava: “esquisito!”

Foi assim que o rapaz aprendeu a se encolher. Quanto mais despercebido passasse, melhor. Aos dezoito, se transformou numa concha e nada nem ninguém era capaz de penetrar sua casca.

Há cerca de seis meses, quando a mãe teve pneumonia das bravas e passou dias internada, se deu conta de que ela envelheceu. Sentiu, num choque, a rapidez com que a vida passava; olhando para trás, viu uma folha em branco. Lembrou-se que entrou nos quarenta sem ter jamais namorado. Não que fosse virgem, isso, não – aprendera com o pai o caminho das putas.

A folha em branco seguia a lhe esmagar os nervos dias depois, quando o chefe percebeu que Raul desenvolvera um tique: sem mais nem menos, esticava a perna direita, dando chutes no ar. Chamado na diretoria da contabilidade, recebeu do patrão a indicação de uma terapeuta e quinze dias de licença.

Desde a primeira sessão, há dois meses, as coisas vêm mudando – devagar, mas mudando. Curada, a mãe deu agora para se preocupar com a história de o filho fazer terapia. Diz que ele paga alguém para colocá-los distantes e chegou até a chorar, clamando que ele suspendesse as sessões. Raul quase cedeu.

No último atendimento, enquanto aguardava a hora na sala de espera, viu um anúncio de revista que lhe pareceu interessante. “Introvertidos anônimos. Pessoas extremamente tímidas: reúnam-se para conversar sobre suas dificuldades na vida social.” A vontade de conhecer o lugar lhe meteu medo de ser ridículo. Assim mesmo, foi.

Acreditava que aquele, talvez, fosse o único lugar onde pudesse encontrar seus pares, onde achasse gente que fosse também meio gente e meio concha. Aí, sim, ele deixaria que alguém lhe penetrasse a casca.

***

Mirou no topo da escada a placa que indicava “Introvertidos Anônimos, AQUI”. Quando mais uma vez experimentou a aflição de pensar que alguém poderia descobri-lo freqüentando o serviço, releu, num sussurro lento: “a-nô-ni-mos”.

Acertou a gravata, ajeitou as calças e conferiu, com a língua, a limpeza dos dentes. Subiu, esperançoso de resgatar ali uma dignidade que ainda não conhecia. Esperançoso de aprender, aos quarenta, a fazer com que uma mulher comum, amadora, pulsasse por ele. Subiu para fazer pulsar qualquer mulher que fosse anônima.

* Imagem: "O Ovo"
Tarsila do Amaral, 1928

10 de novembro de 2007

Sigo pedaços de pão


Foto: inbeesible

Não me cerque. Não é porque foi bem-vindo duas vezes que haverá terceira. E não me exija coerência, coisa sem pé nem cabeça que se inventou. Sou gente, não número. Só matemática pode ser exata, eu, não. Ontem queria você, hoje mudei de idéia.

Não me condene. Somos tão opostos que de nós dois até poderia sair coisa boa, mas não vai. É essa tua ânsia de nexo que me põe distante. Tua harmonia está nos números, não nos sujeitos. Tudo em você é limpinho – quase estéril. Cada coisa no devido lugar; do lado esquerdo, camisas brancas, no meio, as coloridas. Pretas penduradas na parte direita do armário.

Minha vontade é de te virar do avesso, mas ao menor sinal de que vou te descabelar, saca aquele pente que leva no bolso e começa a ajeitar os fios. Até os fios do cabelo têm cada um seu lugar.

De pequena, adivinha qual era meu conto de fadas preferido? Na biblioteca da escolinha, as meninas disputavam A bela adormecida. Eu, já aos seis, não tecia expectativas de ser salva por príncipe encantado. Achava, aliás, aquela figura sobre o cavalo branco, vestindo capa vermelha e chapéu aveludado, muitíssimo monótona. Que salvação pode-se esperar de um homem loirinho dos olhos azuis, parecido com Leonardo Di Caprio, montado naquele cavalo virginal? Pra onde um cavalo desses me levaria?

Como não sou afeita a situações seguras, lá na biblioteca da escolinha eu subia no banco e me esticava toda, até tocar os dedinhos no volume que me enchia de encanto.
Qual é meu conto? Joãozinho e Maria.