15 de novembro de 2007

Anônimo S.A.
(vs. 2.0)

Subia a escada ainda em dúvida. A cada degrau, uma crítica. No caminho entre o tentar e o desistir, lembrou da terapeuta, das palavras da terapeuta. “O que você tem a perder? Mesmo que seja assim, ridículo como você está dizendo, é anônimo. Ninguém vai saber...”.

***

Filho único de mãe super-protetora e pai ausente, Raul foi concebido quando o casal já havia desistido de filhos e montado um canil. Aconteceu que as regras de Alcina atrasaram. Hipocondríaca, correu ao médico atribuindo a um tumor nos ovários a menopausa precoce. Doutor Abreu de Castro tranqüilizou a mulher: estava grávida.

Alcina voltou para casa com um novelo de lã amarela e agulhas de tricô novas em folha. No dia seguinte, o primeiro sapatinho do bebê estava pronto. Até hoje ela guarda o tal sapatinho e todo ano o tira do mofo – lava na mão, que é para não estragar. E se mesmo assim ele ameaça se desfazer, a mulher remenda. Em quarenta anos, nunca passou um aniversário de Raul sem tirar o sapatinho do maleiro mofado.

***

O menino cresceu estudioso. Não criou costume de jogar bola na vizinhança para não perturbar a mãe, que sofria dos nervos se via o filho sangrar pelos joelhos.

Para a família, a timidez patológica era excentricidade, “coisa de gente inteligente demais”, defendia a mãe. No entanto, para o adolescente Raul pouco importava o que ela dizia, porque quando se encarava nu em frente ao espelho, sua figura branca de ombros encurvados gritava: “esquisito!”

Foi assim que o rapaz aprendeu a se encolher. Quanto mais despercebido passasse, melhor. Aos dezoito, se transformou numa concha e nada nem ninguém era capaz de penetrar sua casca.

Há cerca de seis meses, quando a mãe teve pneumonia das bravas e passou dias internada, se deu conta de que ela envelheceu. Sentiu, num choque, a rapidez com que a vida passava; olhando para trás, viu uma folha em branco. Lembrou-se que entrou nos quarenta sem ter jamais namorado. Não que fosse virgem, isso, não – aprendera com o pai o caminho das putas.

A folha em branco seguia a lhe esmagar os nervos dias depois, quando o chefe percebeu que Raul desenvolvera um tique: sem mais nem menos, esticava a perna direita, dando chutes no ar. Chamado na diretoria da contabilidade, recebeu do patrão a indicação de uma terapeuta e quinze dias de licença.

Desde a primeira sessão, há dois meses, as coisas vêm mudando – devagar, mas mudando. Curada, a mãe deu agora para se preocupar com a história de o filho fazer terapia. Diz que ele paga alguém para colocá-los distantes e chegou até a chorar, clamando que ele suspendesse as sessões. Raul quase cedeu.

No último atendimento, enquanto aguardava a hora na sala de espera, viu um anúncio de revista que lhe pareceu interessante. “Introvertidos anônimos. Pessoas extremamente tímidas: reúnam-se para conversar sobre suas dificuldades na vida social.” A vontade de conhecer o lugar lhe meteu medo de ser ridículo. Assim mesmo, foi.

Acreditava que aquele, talvez, fosse o único lugar onde pudesse encontrar seus pares, onde achasse gente que fosse também meio gente e meio concha. Aí, sim, ele deixaria que alguém lhe penetrasse a casca.

***

Mirou no topo da escada a placa que indicava “Introvertidos Anônimos, AQUI”. Quando mais uma vez experimentou a aflição de pensar que alguém poderia descobri-lo freqüentando o serviço, releu, num sussurro lento: “a-nô-ni-mos”.

Acertou a gravata, ajeitou as calças e conferiu, com a língua, a limpeza dos dentes. Subiu, esperançoso de resgatar ali uma dignidade que ainda não conhecia. Esperançoso de aprender, aos quarenta, a fazer com que uma mulher comum, amadora, pulsasse por ele. Subiu para fazer pulsar qualquer mulher que fosse anônima.

* Imagem: "O Ovo"
Tarsila do Amaral, 1928

6 comentários:

Anônimo disse...

ta bem legal teu blog! gostei desse cara meio homem meio concha. que sera´ que vai rolar com ele depois sos introvertidos anonimos. to pirando aqui!
bjão, edu

Simone Iwasso disse...

rê, gostei bastante do blog. vou voltar aqui outras vezes. obrigada pela visita ;-)

um beijo!

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog, muito bom, gostaria apenas de dar uma pequena dica, divulgue o seu blog no Brigg1.

O endereço é

www.brigg1.com

Rê Piza disse...

Oi, Edu! É pra pirar mesmo! bjão!

Oi, Simone! Obrigada pela visita. Eu gostei muito do seu blog, viu. Já até coloquei ali do lado, nos favoritos! Seja bem-vinda! Beijos

Anônimo disse...

Rê, os enredos que vc cria são extremamente hábeis. São diversos recortes com narração enlolventes. destaco o Dr. Abreu anunciando a gravidez para Alcina (primeiro parágrafo do segundo trecho). Beijão

Rê Piza disse...

Ô, Fabinho, brigadão! ;)
Beijão!