21 de outubro de 2007

Não trairás...
trairás


Desenho gentilmente cedido
pelo artista gaúcho Gilmar Fraga

outros trabalhos do desenhista
em
Fragadesenhos

Talvez porque eu tenha estudado em colégio de padres, talvez porque tenha recebido três sacramentos – fui até a crisma –, talvez porque viva num país católico...fecho os olhos nesse vôo Porto Alegre-São Paulo tomada de uma alegria quase infantil, mas também cheia de culpa. “Não trairás”. A voz grossa vem do cérebro, autônoma: voz de Moisés.

De outro pedaço do cérebro, cheia de vida própria, outra voz pergunta o por quê da crise. “Oras, você SÓ passou uma noite com o colega do acento ao lado”, enfatizava. “Traição é fazer coisa muito mais grave que isso.” Olho pra ele e confiro. Faz sentido.

Estou com 32 anos. Com o Caio, há seis. Há cinco sem deitar a cabeça em um peito nu que não seja o dele.

Vim a Porto Alegre em um julho de frio úmido, participar de uma audiência chata em defesa de um empresário estúpido do interior de São Paulo. Pelo menos a companhia na viagem foi espetacular.


***

Conheci o Junior no primeiro dia de escritório. Na sexta-feira seguinte já ficamos amigos, durante um happy hour que se estendeu até as cinco da madrugada, acabando na pista de uma boate no Itaim. Naquela época, fazia um ano que eu estava com o Caio. Deitava a cabeça em um único peito nu havia 366 dias (ano bissexto).

Eu estava com meus novos colegas de trabalho desde as 10h da manhã passada; trabalhamos o dia todo, emendamos o serviço num chope perto do escritório e lá pelas tantas resolvemos sair daquela mesinha apertada e ir dançar.

Meu novo amigo tinha um quê de gente desprendida, o que fazia dele mais atraente à medida que conversávamos. Na boate, passei ao uísque com energético, porque a cerveja estava dando sono. Meu namoro não foi tema da conversa e Caio tinha ido visitar os pais no interior. Resultado: passei a noite com o Junior.

Mas a partir da segunda-feira seguinte, dia após dia fomos nos tornando amigos. Só amigos e muito amigos. A noite de tesão virou assunto nosso de fim de happy hour, quando sobrávamos só eu e ele na mesa úmida de cerveja. Todo mundo sempre ia embora e a gente ficava pra saideira. Essa era a hora de por em dia conversas que não interessavam aos outros: direito autoral, filosofia, política...

Só que aquela noite tinha sido cinco anos atrás e, depois dela, nunca mais deitei a cabeça num peito nu que não fosse o do Caio. Até a noite passada.

***

Porto Alegre estava chuvosa, fria e cansativa. No entanto, mesmo naquela noite em que os termômetros marcavam menos dez graus, tínhamos que comemorar o acordo que conseguimos na audiência da tarde. Nosso cliente, o empresário estúpido do interior de São Paulo, ia ter que desembolsar muito pouco pro infeliz que o processara.

Lá fomos nós, comemorar como tantas vezes comemoramos. Só que, ao contrário das outras vezes (com exceção da primeira), a celebração acabou em café da manhã. Na cama.

Pra falar a verdade, foi muito melhor que da primeira vez, porque a gente estava à vontade – tão à vontade quanto no dia em que cada um veio ao mundo. E longe dos colegas, dos amores, do dia-a-dia, dos referenciais...

No restaurante do hotel eu dividia a segunda garrafa de vinho tinto com o Junior, enquanto a chuva caía, torrencial, através da janela. Nossa conversa sobre o rumo do senado passou para um debate sobre quanto dinheiro faria cada um de nós aceitar sair pelado em capa de revista. Fechamos em R$ 300 mil – sabendo que, no máximo, seríamos convidados a posar nus pra algum fotógrafo em início de carreira por R$ 50 paus. A essa altura, resolvemos subir.

Cada um tinha sua suíte, mas os quartos eram vizinhos. E eram aconchegantes, quentes, mobiliados com uma imensa cama branca que cheirava a amaciante. Naquela cama, três pessoas dormiriam numa boa.

Subi com o firme propósito de sair do elevador direto para o meu quarto, mas não consegui. Ponho a culpa no vinho enquanto, no fundo, eu sei muito bem o que eu quero, e o que eu queria aconteceu: acabamos no quarto dele, os três – eu, ele e a meia garrafa de vinho.

***

Pra mim estava tudo muito bem resolvido. Até pegarmos o vôo.

Nos sentamos, eu na janela, ele no corredor. Junior apertou o cinto, acomodou a cabeça e resmungou um “que prego, Ju...” fechando os olhos pra só abri-los uma hora depois, quando o avião já sobrevoava São Paulo.

Como não tinha conversa, coloquei o fone de ouvido e busquei “Gotan Project” no i-pod.

A música foi o que abriu caminho pra voz de Moisés. O tango me inundou as vísceras. Lembrei daquele peito nu de ontem, que não era o do Caio. Pensei no cheiro de cada um, no desenho dos ombros, dos braços; na musculatura dos peitos e nos pêlos. Foi enquanto pensava nisto que a outra voz, autônoma, veio em meu cérebro argumentar com a de Moisés.

Olhando de cima abaixo aquele homem no acento ao lado – que se proclamava solteiro convicto e com quem eu me dava tão bem – optei por me desfazer daquela culpa. Por que, em realidade, ela não fazia sentido nenhum pra mim.

Aconteceu que me despi do sétimo mandamento ontem à noite, quando antes de deitar a cabeça no peito nu e cheio de particularidades desconhecidas daquele cara, me despi pra ele.

Amanhã pela manhã, o Junior vai voltar a ser, como sempre me refiro a ele pro Caio, só “o Junior, aquele meu amigo do trabalho”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Caraca Re......q bom te rever....e quanto ao texto.............forte hein.....
Vc tem um dom.......e vc mexe com o intimo de quem lê seus textos..............
tava tentando imaginar vc no lugar da personagem.....e a verdade...é q fiquei totalmente sem ação....nem sei o q pensar.....sinal q o texto mexeu mesmo....rsrs

bjao re...e nao some mais...

ARi

Anônimo disse...

bom saber que tem coisa muito boa estreando na blogosfera. Entre Amelie ou Vuelvo Al Sur, Gotan Project foi outra recente descoberta que me causou impacto. Sua narrativa é bem bacana, com detalhes a la Rubem Fonseca. Voltarei sempre.

Unknown disse...

Mais um blog que vou ler com certeza...e ficará nos meus favoritos!
parabens