Foto: Payuta Louro
Sábado com sol. Parquinho, meu neto de quatro anos, gira-gira e balanço. Lembro das cores – eram muitas. Sob o amarelo dourado daquela manhã de primavera, uma profusão de azuis, vermelhos e verdes em movimento compassado com os brinquedos. Os cabelos pretos do meu neto escorriam sobre sua testa.
Das últimas coisas que vi, quero guardar seu sorriso de dentes de leite e boca vermelha. Vermelho vivo, vermelho-saúde.
Dei a ele algodão doce. Sorri e olhei em volta. Nesta hora, o parquinho foi ficando distante e os sons passaram a chegar aos meus ouvidos em câmera lenta, enquanto as cores sumiam. Tive tempo de ver olhos arregalados de neto e ouvir um chamado que ecoava longe: ”VÔ?!”.
Abri os olhos com o rosto colado na grama e mal alinhado àquele corpo que não mais me obedecia. De nariz enfiado no mato, senti cheiro de terra regada, cheiro de terra úmida. Tentei mais uma vez me levantar, em vão. O corpo não respondia.
De repente, de todas as cores só ficou a escuridão.
***
Não sei exatamente quanto tempo passei sem consciência. Pela conversa dos que me cercam, foram dias. Acontece agora que, apesar de consciente, não tenho como demonstrar que acordei.
Não abro os olhos e não consigo mexer nenhum músculo, nenhum maldito músculo deste corpo que só faz pesar sobre a cama. Nem quando Lina fica horas ao meu lado e pede “aperta minha mão se estiver escutando, pai...”. Toda vez estou escutando, mas não consigo apertar sua mão.
Ignorando que eu esteja acordado, as pessoas falam do meu “caso” como se eu não estivesse aqui. Entre vozes de parentes, médicos e enfermeiras, Carmina Burana toca na minha cabeça, sem cessar. É sombria e tensa a trilha sonora da minha escuridão.
Os doutores garantem para Amália que não estou sofrendo; afirmam convictos que, “conforme as ressonâncias apontam”, não posso sentir nada. Falam coisas sobre meu cérebro ter sido “afetado” e explicam com didática porque os “neurônios morreram”. Por fim, baixam a voz em tom de pesar, ao revelar para Amália a existência de uma “área necrosada” e a alta probabilidade de “seqüelas severas, caso sobreviva”.
No entanto, contrariando as garantias confiadas à tecnologia, posso perceber tudo o que acontece ao meu redor. A despeito dos exames, eu sinto e ouço, perfeitamente. Sinto o toque das mãos finas da Amália no meu rosto – o mesmo toque de três décadas atrás, quando nos conhecemos. E escuto seu choro quando, depois de tentar a todo custo arrancar uma reação do meu corpo inerte, desiste e verte em lágrimas. Gosto quando ela chora de rosto colado no meu. Seu pranto escorre até meus lábios secos e posso sentir o gosto do sal.
Aqui, me alimentam pelas veias. Outro dia, uma das enfermeiras disse que não encontrava mais as do braço. Começaram, então, a enfiar a agulha na minha coxa esquerda. Me desespero por não conseguir pedir que parem. Seria maravilhoso poder descansar a consciência.
Preso dentro de mim nesta UTI, tenho ultimamente pensado muito em suicídio. Em eutanásia também, mas o direito – aos olhares alheios ilegítimo – de acabar eu mesmo com minha vida é tema da maior parte dos meus pensamentos. Se meu corpo voltasse a me pertencer por apenas cinco minutos, daria um jeito de acabar com tudo. Escolheria maneira rápida e, na medida do possível, emocionante. Cair quarenta metros, livre, na direção de uma cachoeira pedregosa seria um modo de morrer com emoção.
Tem gente que escolhe formas mais trabalhosas de acabar com a vida. Eu faria de forma que não demorasse. Sinto preguiça só de pensar em me matar como Sylvia Plath, por exemplo (“Ariel” é livro de cabeceira da Amália – a versão original, em inglês). A poeta podia ter cortado os pulsos – forma mais dramática de suicídio, tipicamente feminina – ou dado um tiro certeiro nas têmporas. Mas, não. Sylvia abriu o gás de cozinha e esperou que a vida fosse embora aos poucos.
Penso a beça nessas coisas. No entanto, de nada valem estes pensamentos, já que estou fadado a ser mantido vivo e inerte com uma agulha espetada na coxa, até o dia em que esta minha consciência resolver sair de cena e descansar.
Quando chegar essa hora, ao invés da Carmina Burana que me martela a mente, tensa, quero que uma melodia de paz reverbere em mim. Quero morrer numa tarde de sol bem amarela e, ao descer pelo buraco na terra, meu último desejo será o de ser ninado por uma voz de mulher entoando a Ave Maria, de Gounod.